quarta-feira, 7 de julho de 2010

VIVENDO DO LADO ESQUERDO . . .


Bem, lá se vão três meses com a mão direita imobilizada. Sou destra, e além de ter que fazer todas as coisas com a mão esquerda (que também não está muito funcional), é só ela que tenho no momento. Adaptar-se é necessário e urgente! Já tenho uma certa prática, afinal foram quatro meses sem usar as duas mãos. Mas o mundo não foi feito para quem só tem uma mão e ... a esquerda. Duplamente fora dos padrões. Chego ao fim do dia esgotadíssima, já que até para os atos mais simples necessito “pensar”. Tudo que fazemos durante o dia, a maioria é de forma automática. Já viraram hábito. Não pensamos que lado temos que girar a tampinha para abrir a garrafa de “coca-cola”, a torneira, a maçaneta ou a chave. Não “queimamos neurônio” para escovar os dentes, para usar talheres, encher o copo com suco ou passar desodorante. Não fazemos sinapses e novas conexões cerebrais para executar tarefas que dependem das duas mãos, como pegar um elevador falando ao celular, dar tchau carregando uma sacola ou pegar um táxi portando uma bolsa.  Simplesmente fazemos, como se tivéssemos nascido já sabendo. Pois bem, sofro duplamente! Tive que aprender a usar a mão esquerda e só ela. A direita, depois da cirurgia, toda imobilizada e dolorida (osteotomia), era como se não existisse. O gozado é que eu não sabia como a minha mão esquerda era tão péssima, tão sem coordenação motora. Apesar dela não conseguir executar alguns movimentos, ela parecia muito independente e desenvolta quando auxiliando a direita. Sozinha parece que esqueceu como faz as coisas. Parece que nada funciona quando feito só com a mão esquerda. Tesouras e facas não cortam, botões de calças são dificílimos de fechar, garrafas plásticas só abrem se colocadas entre as pernas ou embaixo do braço e caixas de leite só furando, ou melhor dando facadas. Abrir latas, nem pensar! E varrer? Bem, tive que deixar para lá e usar só o aspirador. Os caixas eletrônicos também não contribuem com o local de inserir o catão do lado direito.
Alguns hábitos tive que mudar. Inclusive os sociais. Prá começar cortei o cabelo  bem curto e tenho mantido assim. Como fazer “rabo de cavalo”? Pentear e enfrentar a canseira na hora de lavar. Certos alimentos deixei de comer em público, pois precisam da faca para cortar. Como comer bife? E pizza? Só peço para comer de palito e optei pelos alimentos mais moles, que podem ser cortados com o garfo. Deixei também os enlatados de lado por não conseguir abri-los. Minhas roupas também mudaram. Muito moleton, calças com elástico na cintura, pouco zíper e nada de botões, principalmente os das calças jeans. Sapatos agora, só os sem cadarço, pois mesmo tentando insistentemente não consegui amarrá-los com uma mão só. A solução foi comprar tênis sem cadarço já que moleton sem tênis não fica muito bem. E comprar tênis para usar sem meia, pois colocá-las é uma tortura, se feito só com uma mão. Bem, ainda estou tendo dificuldades com o soutien ...
Já fiquei um bom tempo sem poder usar as duas mãos, quase que totalmente dependente e achava que se pudesse usar pelo menos uma, tudo seria bem melhor. Estava enganada, só com a esquerda eu não sou nada. Na verdade, para nos virarmos nesse mundo temos que "ser inteiros". A lateralidade está toda confundida. Abro ao invés de fechar, puxo no lugar de empurrar e pentear os cabelos olhando no espelho é tão difícil que desisto. Tento passar o pente de uma forma, mas a mão faz de outra. O melhor foi adotar também um novo look!
Como lavar, coçar, passar desodorante ou hidratar o braço esquerdo? Tenho a pele um pouco seca. Preciso de muito hidrante no inverno. Desenvolvi uma técnica para passar creme com os joelhos. Sento, passo hidratante no joelho esquerdo e esfrego o braço nele. Não fica tão bom, mas pelo menos faço sozinha.
E escrever? Meu Deus, como as crianças devem sofrer para começar a escrever! Quero fazer um “s” minúsculo e sai um “r”. Eu mesmo não entendo certas coisas que escrevo. Meu número “Ч” tem que ser bem pensado ao escrever, senão faço um “µ”. Minha cabeça tem que pensar ao contrário. Eu sei o que é um número quatro, mas minhas mãos não acompanham minha cabeça
Tive que mudar minha personalidade também, antes tão ágil e agitada, agora lenta e calma. Tive que lutar contra minha pressa nata e fazer uma coisa de cada vez. Quem de longe lê isso não imagina quão difícil é pegar um copo, colocá-lo na pia, abrir a geladeira, pegar a água (deixo aberta a porta), levar até o copo, guardar a jarra, fechar a geladeira e só depois beber. É tão mais fácil e rápido com as duas mãos!
Gosto de tomar um vinho no inverno. Principalmente numa noite fria e assistindo um filminho na TV. Mas não deu certo! Lutei exaustivamente com a garrafa de vinho. Não era possível eu não conseguir abri-la. Sentei-me ao chão, peguei o saca-rolha, coloquei a garrafa entre as pernas enrolada num cobertor e ... não consegui nem furar a rolha! Ela parecia tão macia! Estava quase desistindo e me veio a idéia de afundar a rolha. Tentei em vão. Busquei um martelo para dar uma ajudazinha, mas a garrafa não ficava firme entre as pernas e resolvi parar antes de martelar as pernas também. A garrafa venceu! Ao final da lida se via na cozinha as marcas da batalha: martelo, facas, cobertor, saca-rolha e a taça vazia. Abrir vinho requer muita habilidade para ser feito só com uma mão. Optei pela cerveja geladinha mesmo (de lata, é claro)! Afinal, é muito bom tomar uma cervejinha gelada, embaixo das cobertas, num inverno de 10º.
Estou virando uma outra pessoa. Como outras coisas, bebo outras bebidas, visto outras roupas, cumprimento com a mão errada, ajo de outra forma, minha assinatura mudou, já não uso tanto hidratante e até não freqüento mais os mesmos lugares. Tudo porque me falta uma mão. Tenho receio de não ser reconhecida na rua!
Mudei? Não. Adaptei!
Adaptei para poder viver nesse mundo desadaptado! Mas ainda sou eu, um pouco “diferente”, contudo, ainda gente. Mais paciente, com menos pressa, mais tolerante, mais receptiva, mais criativa, menos exigente e por aí vai. Parece que estou mudando e tudo leva a crer que para melhor. É, acho que agora entendo quando dizem que Deus escreve certo por linhas tortas e que se não for pelo amor, que seja pela dor!
Obrigada Senhor!
Olha a fotinha do meu pulso!

Osteotomia do radio distal.














VEJA TAMBÉM: FALANDO SOBRE LATERALIDADE
                             IMAGEM CORPORAL

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